por Pedro Barros Costa
Artigo publicado na revista LPAZ | vol.3 de 7 de dezembro de 2017 - pode ler aqui
Em junho de 1945, Frank Sinatra subiu ao palco em Santa Maria e na Terceira, no âmbito de uma digressão internacional para os militares aliados durante a II Guerra Mundial. Foram as primeiras atuações do lendário cantor norte-americano em solo europeu.
Frank Sinatra nos anos 40
A II Guerra Mundial terminara na Europa e aproximava-se do fim na frente asiática. No Pacífico, as tropas norte-americanas quebravam a resistência japonesa na batalha de Okinawa. Nos EUA, o Presidente Harry S. Truman encontrava-se com o general Patton e ultimava a conferência de Potsdam, com Churchill e Estaline. Mas a atualidade noticiosa do conflito, publicada numa newsletter da base da Força Aérea dos EUA nº 1391, em Santa Maria, nos Açores, interessava pouco aos soldados norte-americanos estacionados na ilha, naquele dia de final de primavera de 14 de junho de 1945. Os militares aguardavam com expectativa por duas atuações anunciadas no documento informativo, marcadas para as 19h00 e 21h00 dessa quinta-feira, na sala de espetáculos da base. O cabeça de cartaz: Frank Sinatra.
Já conhecido como “A Voz” e imensamente popular nos EUA, o lendário intérprete de “My Way”, então com 29 anos, vinha acompanhado de um grupo multifacetado de artistas, na fase inicial de uma digressão para as tropas que passaria por Casablanca e terminaria com um espetáculo em Roma. A newsletter publicada para os soldados descrevia o grupo como “um vistoso elenco de estrelas do cinema e do teatro”. Atuariam o comediante Phil Silvers, “a oferta hilariante do [teatro] burlesco a Hollywood”; a atriz Fay McKenzie, “que necessita apenas de subir ao palco para entusiasmar todos”; a dançarina acrobática Betty Yeaton, a “enviada da Broadway para a terra dos filmes”; e, finalmente, o “mestre da música”, o pianista Saul Chaplin.
O documento, de apenas duas páginas, noticiava o início da digressão internacional e descrevia o espetáculo, realizado no que viria ser o Cinema do Aeroporto, uma ampla sala que à época tinha uma capacidade de cerca de 1.500 lugares, como “fantástico”. Na tournée da USO (United Services Organization), uma entidade não-governamental que organiza até hoje atuações para as forças norte-americanas estacionadas no estrangeiro, o elenco atravessaria o Atlântico, com espetáculos preliminares em Nova Jérsia e na Terra Nova, voando depois num Douglas C-47 até às ilhas Terceira e Santa Maria. As atuações nos Açores marcaram a estreia de Frank Sinatra na Europa. “O espetáculo ou espetáculos [nos Açores] foram os primeiros em solo europeu”, confirma James Kaplan, biógrafo de Sinatra, autor de dois exaustivos volumes sobre a vida do músico. Fora do âmbito militar, Sinatra só daria o primeiro concerto na Europa em julho de 1950, no teatro londrino Palladium, de acordo com o site Sinatra Family.
Arquivo do Quartel-general do Destacamento Americano na Base Aérea das Lajes Historical Report - Santa Maria Azores. Pastas “Santa Maria Airbase”
O norte-americano Ernest Alan Meyer encontrava-se destacado na base aérea, onde trabalhava como criptógrafo. Embora não se recorde das atuações em si, evoca o entusiasmo da chegada de Sinatra ao aeroporto. “Lembro-me que se espalhou a palavra da chegada do avião dele [Sinatra], e quando aterrou, muitos soldados, incluindo eu, estávamos na placa para vê-lo desembarcar. Recordo-me da porta do avião abrir e de Frankie aparecer e acenar”, recorda Meyer, que faria carreira académica como professor e investigador de microbiologia, na universidade do estado de Oregon. “Depois prosseguiu e, junto à porta do avião, cantou algumas canções”, lembra. Só lamenta não ter assistido ao concerto. “Provavelmente, tive de trabalhar nessa noite”.
Alan Meyer lamenta não ter assistido aos concertos de Santa Maria, mas houve, pelo menos, um português que teve esse privilégio: Viriato Portugal, então um jovem trabalhador na base norte-americana. “Houve alguém americano (...) que me convidou para ir ao cinema com ele. E quem é que lá estava? Frank Sinatra”, recordou no documentário Santa Maria Connection (2012), realizado por Eberhard Schedl, sobre a história do aeroporto de Santa Maria, que tomou o lugar da base após a II Guerra Mundial e se tornou um importante ponto de passagem nas travessias transatlânticas para a aviação comercial – e, consequentemente, de estadistas, atrizes, músicos, aristocratas e outras celebridades, que deram seguimento à presença do grupo liderado por Sinatra.
Os espetáculos em Santa Maria foram precedidos de uma passagem pelas Lajes, na Terceira, onde funcionava então uma base da britânica Royal Air Force. Sinatra, de acordo com a imprensa local, passeou nas ruas de Angra do Heroísmo, no dia 13 de junho, antes de atuações que decorreram nesse mesmo dia. O jornal A Pátria, na edição de 14 de junho, refere a passagem do “ídolo das mulheres americanas” pela cidade terceirense: “É verdade, senhoras leitoras e senhores leitores: Frank Sinatra esteve ontem em Angra, já interpretou as suas estonteantes e delirantes canções e ainda hoje se lhe poderá conseguir um autógrafo.” Além de ter distribuído cumprimentos e autógrafos, Sinatra comprou uma máquina fotográfica Zeiss na loja Foto-Bazar, na rua de São João, episódio célebre mencionado no livro Jazz na Terceira - 80 Anos de História, de João Moreira dos Santos e António Rubio.
Parte do grupo que atuou em Santa Maria e na Terceira, fotografado nas Lajes: o pianista Saul Chaplin, a atriz Fay McKenzie, Sinatra, a atriz Joan Miles e o comediante Phil Silvers, da esquerda para a direita Fonte: Short History of Lajes Field
Ao contrário do que sucede com a deslocação à Terceira, a passagem de Sinatra por Santa Maria quase não está documentada. A localização da base, construída após um difícil acordo diplomático entre Salazar e os EUA, manteve-se confidencial até agosto de 1945, para não quebrar a aparência de neutralidade de Portugal. O secretismo levava a que existissem até serviços de censura para evitar que, nas cartas dos soldados estacionados na base, se revelasse a localização secreta. Além disso, os arquivos mais antigos da USO – fundada em 1941 – foram destruídos num incêndio, informou a assessoria de imprensa da organização.
Contudo, na biografia All The Way, o jornalista Michael Freedland relata um episódio passado nos Açores, muito provavelmente em Santa Maria, narrado pelo pianista Saul Chaplin. Por volta da meia-noite, quando tomavam uma bebida na casa de um tenente, Sinatra apercebeu-se do movimento incessante de aviões e perguntou o que se passava. “São soldados feridos a chegar depois de terem sido evacuados de Itália. Param aqui para limpar o avião e reabastecer”, explicaram-lhe. Nesse período, decorria o Green Project, no âmbito do qual foram repatriados 50.000 veteranos de guerra por mês da Europa continental para os EUA, a maior parte via Santa Maria e os restantes através de outras rotas atlânticas, escreveu Norman Herz, um antigo militar do corpo de engenharia do Exército norte-americano que participou nos preparativos da construção da base, no livro Operação Alacrity: Os Açores e a Guerra no Atlântico.
Sinatra pediu para ver os soldados acamados, incluindo muitos mutilados pelos ferimentos. Quando viram a estrela, pediram de imediato para que cantasse. “Não posso, não tenho piano”, respondeu. “Canta à mesma”, pediu um soldado. “Sem acompanhamento”, disse outro. E assim fez Sinatra, durante horas, relata o pianista. E ainda entoou a canção de embalar de Brahms enquanto os soldados eram transportados para embarcar nos aviões que os levariam de regresso a casa. “Talvez isto vos ajude a adormecer”, disse Sinatra, na despedida, citado pelo pianista da digressão.
A revista norte-americana Modern Screen também assinalou a passagem em Santa Maria do avião das estrelas, lideradas por um “magricela, de olhos claros, rosto ossudo, que canta um pouco de vez em quando, chamado Frank Sinatra”. A publicação descreve que o grupo proporcionou uma receção memorável, numa tarde soalheira, a soldados feridos vindos de Itália num avião de transporte C-54. “Em poucos minutos, os heróis inválidos foram alinhados em filas de macas na placa de betão, apanhando ar fresco, [tomando] café e [fumando] um cigarro para aliviar as suas desgraças. E subindo e descendo as alas para dar as primeiras boas vindas estava o grupo de estrelas de Hollywood, esforçando-se para fazer [do momento] um bom convívio americano à moda antiga”, refere o artigo. Enquanto procurava animar os militares enfermos, Sinatra deparou-se com um velho conhecido da zona de Brooklyn: Katzie, um taxista que se queixou das vezes que as fãs do cantor quase lhe destruíram o carro à porta do Lindy’s, conhecido restaurante da Broadway frequentado por figuras do meio artístico nova-iorquino, antes de o saudar efusivamente.
A atitude humilde da celebridade ajudou ao sucesso da digressão internacional, que constituiu um passo arriscado para Sinatra. Apesar de ter sido considerado o cantor mais popular dos EUA pelas revistas Billboard e Down Beat, no início da década de 40, o mesmo não se passava junto das forças armadas norte-americanas, onde era considerado persona non grata. Tudo porque um colunista social escreveu e denunciou às autoridades, com base numa carta anónima, que Sinatra teria pago 40.000 dólares para escapar ao serviço militar e, consequentemente, ao destacamento para uma das frentes de batalha.
O rumor viria, anos mais tarde, a ser desmentido pela divulgação dos ficheiros confidenciais do FBI sobre Sinatra: na verdade, fora considerado inapto para o serviço devido a um “tímpano perfurado” e “instabilidade mental”, refere um artigo do The New York Times. Mas, à época, a noção geral entre os soldados era a de que, por ser um privilegiado, Sinatra escapara ao destino de milhões de jovens norte-americanos. O Stars and Stripes, jornal oficial das forças armadas, mostrou-se implacável com o músico: “Os ratos também fazem as mulheres desmaiar”, publicou nas suas páginas, referindo-se jocosamente aos concertos de Sinatra, frequentados por milhares de fãs em delírio.
Segundo a filha mais velha do cantor, Nancy Sinatra, os pedidos para atuar junto das tropas norte-americanas e dar, dessa forma, o seu contributo para o esforço de guerra teriam sido sistematicamente recusados. Em notas biográficas publicadas no site Sinatra Family, Nancy escreve que o FBI e o seu todo-poderoso diretor, J. Edgar Hoover, investigavam Sinatra pelo apoio a Franklin D. Roosevelt e a causas de esquerda, que a imprensa de direita amplificava ao chamá-lo de “comunista” e “anti-americano”. Por essa razão, o visto para se deslocar ao estrangeiro teria sido sempre negado. James Kaplan, o biógrafo, tem outra versão: “A verdade é que Sinatra nunca foi ao estrangeiro durante a guerra [na Europa] porque tinha medo”, escreve em Frank: The Making of a Legend.
Arquivo do Quartel-general do Destacamento Americano na Base Aérea das Lajes Historical Report - Santa Maria Azores. Pastas “Santa Maria Airbase”
Até que o publicista de Sinatra, George Evans, teve a ideia de reabilitar a imagem do cantor junto das tropas, com a ajuda de Phil Silvers, refere Kaplan. De acordo com o biógrafo, foi concebido um espetáculo em que Sinatra seria o principal alvo do comediante, à semelhança de outros que tinham já realizado nos EUA – e assim se passou em Santa Maria e na Terceira. Silvers abria o espetáculo a insultar Sinatra, para gáudio da assistência: dizia que não sabia cantar, expulsava-o do palco, até o fingia esbofetear. No final do sketch, “os GI imploravam para ouvi-lo cantar”, descreve o biógrafo. Daí em diante, o sucesso estava garantido. Por seu turno, Freedland descreve que os soldados, “munidos de todo o tipo de vegetais podres” para atirar a Sinatra, acabavam rendidos com a atuação.
Depois de Santa Maria e da Terceira, o grupo voou para Casablanca e outras bases no norte de África, passando o tempo entre as viagens desconfortáveis no avião militar e hospedando-se em instalações precárias. Atuou ainda numa série de cidades italianas, num total de 17 espetáculos em 10 dias, perante quase 100.000 soldados, pelos cálculos de Kaplan. A tournée culminou num último concerto em Roma: “O cantor fez piadas consigo próprio ao longo do programa e teve o público do seu lado durante todo o tempo”, descreveu o The New York Times, ao noticiar o final da tournée. Só não impressionou o Papa Pio XII que, numa audiência no Vaticano, o confundiu com um tenor.
Artigo publicado na revista LPAZ | vol.3 de 7 de dezembro de 2017 - pode ler aqui
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