Sessão Evocativa do
75º Aniversário da Transferência do Aeroporto de Santa Maria
de militar e americano para português e civil
[Discurso do Presidente da Associação LPAZ, António Monteiro]
Caro Subsecretário Regional da Presidência, em representação do Senhor Presidente do Governo Regional dos Açores;
Caro Presidente da Câmara Municipal de Vila do Porto;
Cara Cônsul dos Estados Unidos da América nos Açores;
Caros representantes das várias entidades aqui presentes,
Olá Meninos e Meninas da Escola do Aeroporto,
Minhas Senhoras e Meus Senhores,
Hoje, há 75 anos – no dia 2 de junho de 1946 –, deu-se a transferência da Base Aérea Americana de Santa Maria para a jurisdição portuguesa. A cerimónia contou com parada militar e hastear da bandeira portuguesa em presença de altas patentes militares portuguesas e do comandante do Quartel-General Americano do Atlântico Central, sedeado em Santa Maria num grande edifício que existia ali atrás. Neste mesmo dia acontecia uma sessão análoga, nas Lajes da Praia da Vitória, com autoridades portuguesas e britânicas, transferindo também para a jurisdição portuguesa a Base Britânica dos Açores, na Ilha Terceira.
O dia de hoje, há 75 anos, seria um ponto de chegada e de partida; seria o fim do princípio:
– para a aviação e as comunicações transatlânticas;
– para a transferência do domínio do Atlântico, entre a velha Rainha dos Mares – a Inglaterra – e o paladino da Democracia e do anticolonialismo: os Estados Unidos;
– para a função e importância geoestratégica dos Açores – talvez a razão pela qual estas ilhas foram povoadas, em primeiro lugar;
– para este Arquipélago dos Açores e suas gentes, e
– para Santa Maria, em particular.
Correspondeu ao fim da primeira parte da história da aviação nos Açores em que Santa Maria aprece, segundo as palavras do Professor Medeiros Ferreira, de forma surpreendente.
Em 1919, quando acontece a primeira ligação aérea transatlântica, um artigo na National Geographic Magazine chama o seu comandante de “Colombo do Ar”, lembrando o facto de que também Cristóvão Colombo foi responsável pela primeira escala técnica transatlântica, em fevereiro de 1493, no seu regresso da descoberta da América, aqui, em Santa Maria. Apesar de apenas na lembrança, a ilha-mãe estava presente.
Depois desta primeira travessia, a história da aviação só regressa aos Açores em Maio de 1926, com o Raid Lisboa-Madeira-Açores num hidroavião chamado “Infante de Sagres”. Ao aproximarem-se dos Açores tiveram problemas mecânicos, levando-os a amarar na baía de Vila do Porto, no dia 9 de Maio de 1926. Foram ajudados por vários marienses e seguiram para São Miguel.
Depois do hidroavião português, foi a vez de um zeppelin alemão sobrevoar Santa Maria, deixando um saco de correio no lugar de Malbusca, no dia 2 de Agosto de 1929. Este evento e o acidente dos pilotos polacos que tentaram uma aterragem na Graciosa terá sido o móbil para que o fundador do jornal “O Baluarte” tenha escrito o artigo “Aviação em Santa Maria”, propondo a construção de um aeroporto em Santa Maria, pois seria a ilha que tinha as melhores condições para tal.
A aviação terrestre só chega em pleno aos Açores com a Segunda Guerra Mundial. As forças portuguesas preparam campos de aviação em Santana, Rabo de Peixe, em São Miguel, e nas Lajes da Praia da Vitória, na Ilha Terceira. As Lajes da Terceira é o local escolhido para a instalação da Base Britânica, permitida por Portugal – país neutral no conflito – ao abrigo da aliança secular que une os dois países desde os tempos da Batalha de Aljubarrota.
Mas a Base das Lajes só admitia as forças americanas como “assistentes técnicos”. Nem mesmo podiam usar as suas insígnias nos aviões, apesar de serem responsáveis pelo grosso do trabalho. Foi aí que George Kennan, um jovem diplomata americano em Lisboa, ainda em 1943, propôs a Oliveira Salazar a construção de um aeroporto na Ilha de Santa Maria por parte da Pan American Airways. Seria um contracto comercial, não ferindo assim o estatuto neutral de Portugal. Naturalmente, o que estava em cima da mesa, mais do que a necessidade de uma segunda base nos Açores em tempo de guerra, era o papel que a aviação teria no pós-guerra e a necessidade de os EUA se libertarem do jugo ainda colonialista da Inglaterra.
As negociações para a construção do Aeroporto de Santa Maria foram lentas e demoradas. Envolveram um contrato secreto para a construção, em Julho de 1944, e um contrato-fachada com a Pan American, em Agosto de 1944. Este processo seria finalizado com o Acordo de Santa Maria de 28 de Novembro de 1944.
O Acordo de Santa Maria é o primeiro acordo entre Portugal e os EUA referente aos Açores e é a linha de vida que liga Portugal e os EUA até à entrada de Portugal na NATO (em 1949) e a assinatura do Acordo dos Açores (em 1951), já num ambiente multilateral. Em poucas linhas, este acordo – cujo título completo é “Acordo entre os Governos de Portugal e dos Estados Unidos da América com vista à participação indireta de Portugal nas operações do Pacífico” – diz que, em troca da cedência da autorização de construção, uso e controlo de um aeroporto na Ilha de Santa Maria, os EUA comprometem-se a fazer regressar à soberania portuguesa a única parcela que se encontrava invadida por forças japonesas: Timor-Leste. Do outro lado do mundo!
Santa Maria aparece assim como um novo milagre para a nação portuguesa. É que quando aquela que se revelava como a grande potência militar e económica anticolonialista do século XX se compromete em reconhecer e devolver a mais ínfima parcela do império português, está, tacitamente, a dizer que o vai proteger; ou, pelo menos , não o vai pôr em causa. Esta atitude de tolerância do Império Português parece só começar a alterar-se na era de John F. Kennedy; depois do Azorean Refugee Act, abrindo as portas à emigração americana, e da entrada em operação do Boeing 707, o que é o início do fim da preponderância dos Açores como escala técnica para a aviação civil e militar.
O Acordo de Santa Maria de 28 de Novembro de 1944 foi assinado em plena negociação da Convenção de Chicago sobre a Aviação Civil Internacional, assinada a 7 de Dezembro; 9 dias depois. Com esta convenção foram determinadas as chamadas “Liberdades do Ar” que os Estados negociariam entre si. Havia, no entanto, duas que eram aceites automaticamente pelos Estados contratantes desta convenção: a Liberdade de sobrevoo e a liberdade de escala técnica para reabastecimento. Ora, tendo os EUA um aeroporto nos Açores sob seu “uso e controlo”, tinham assim os céus abertos para as suas companhias aéreas explorarem as ligações transatlânticas.
A construção da Base Aérea de Santa Maria durou menos de um ano. Começou em Agosto de 1944 e foi inaugurada em Julho de 1945. Contou 1700 trabalhadores civis portugueses e 1600 trabalhadores civis americanos, na sua construção. Quando entrou em pleno funcionamento, contava com mais de 2 mil militares americanos ao serviço.
Teve um custo total de 13 milhões de dólares, na altura. Fazendo a correspondência aos valores atuais, podemos estimar um valor de 18 mil milhões de dólares. Para termos uma noção, o programa Starlink da SpaceX, que está a implementar uma rede de satélites global, tem um custo estimado de 10 mil milhões de dólares.
Em Santa Maria foi instalado o estado da arte das tecnologias aeronáuticas e de comunicações da altura. A sua transferência para a jurisdição portuguesa permitiu a que Portugal tivesse condições para assumir um papel preponderante no controlo e segurança do Atlântico Norte, em paridade com os EUA, Canadá e Reino Unido.
Esta função que Santa Maria desempenhou, sobretudo no século XX, deixou marcas profundas na ilha. A passagem por Santa Maria era muitas vezes a única experiência que um estrangeiro tinha de Portugal. O Aeroporto de Santa Maria era assim como que uma vitrine de um Estado Novo que queria também passar uma imagem de modernidade. Isto aumentou o fosso entre a ilha ancestral e a modernidade pela qual foi invadida. Como resultado, temos que Santa Maria é a ilha dos Açores com a maior taxa de emigração, per capita.
A transformação da Base Americana em Aeroporto Internacional de Santa Maria fez desta ilha, nas palavras da Time Magazine, uma “Base da Paz”. Se, por um lado, o braço militar americano para manter em apoio à Europa em Guerra Fria passava pelas Lajes da Ilha Terceira, o braço económico-civil de apoio à unidade europeia e do Ocidente, em tempos de Plano Marshall, passou por Santa Maria. É curioso, também por isto, o código ICAO do nosso aeroporto: LPAZ. Inclui a palavra PAZ.
Com Santa Maria e com as Lajes há uma subida à terra da aviação nos Açores. Deixámos de depender sempre e só do mar para aceder às ilhas. Deixámos de ser apenas um arquipélago – grande mar - para ser também um arquicéu. O arquipélago deixa de ser defendido ilha-a-ilha e passa a ser encarado mais como uma unidade política, aprofundada à medida que as restantes ilhas foram tendo também os seus aeroportos e passou a ser mais fácil e mais rápido estarmos uns com os outros.
Saibamos estar à altura deste novo tempo, libertos do mar.
Uma ilha já não é uma ilha hoje
O mar é um espelho fundo
Coagulado
Sobrevoado
Distante
Tão parado
Tão longe já do medo de outras eras
Uma ilha já não é de muros de água
Para livrar-me dela tenho asas
Libertei-me da ilha no meu corpo
Mas tenho-a enquistada na minha alma[1]
[1] “litania do eterno e do finito” in FERIN, Madalena – Prelúdio para um dia perfeito. Lisboa: Salamandra, 1999, pp. 77-94, p. 87. Madalena Ferin (1929-2010): poetiza mariense considerada uma das maiores açorianas do século XX. O poema “litania do eterno e do finito” foi Prémio Irene Pessoa 1999.
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